quinta-feira, 14 de julho de 2016

Marcello Gugu e o leque temático no rap brasileiro




A abertura do leque estético no rap brasileiro é um lado positivo que estamos vivenciando nos últimos anos. Musicalmente, há variedade na matriz de paletas. É só lembrar como a mixtape Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência do Costa a Costa parecia um oásis na época de seu lançamento; para além da qualidade das composições, havia um respiro criativo na abordagem das bases. De lá pra cá, a produção se qualificou e temos hoje artistas cujo corpo melódico se distingue claramente. Embora possa haver influência comum, a maneira de compor de Rodrigo Ogi, Emicida, Criolo, Don L, Jamés Ventura, Chave Mestra, Tribo da Periferia Kamau, Rashid, Lay e NiLL, por exemplo, resulta em algo distinguível. Fica uma pergunta, porém: Estamos exaltando o talento individual de determinados nomes ou uma saudável capilaridade? Digo, a diversidade está em certos indivíduos ou há real liberdade criativa? Evidente que tal diversificação também gerou uma liberdade que resulta, em certos momentos, em músicas irregulares e que evidenciam certa inabilidade: nem todos podem cantar como Ogi ou podem se aproximar do samba ou da MPB com naturalidade ou mesmo sabem usar o autotune. Forçar isso é um erro que vemos por aí. 

Mas a análise aqui se volta para outro aspecto: os temas abordados nas letras. Também vale ressaltar que já a algum tempo a dicotomia polícia versus bandido se expandiu para diversos assuntos, de crônicas urbanas a afirmações feministas, de papo largado a elucubrações sociais, passando também (e infelizmente) ao dogmatismo da autoajuda. Mas há temas pouco abordados ainda. Por esse motivo, o novo som do Marcello Gugu, New Orleans, joga um novo dado nesse caldeirão da diversidade. Não é a primeira vez que a doença mental é tratada no rap, mas a música talvez seja o mais bem acabado retrato das agruras da síndrome do pânico, da depressão e da ansiedade em formato de rimas. Se as estatísticas mostram que são muitos os brasileiros (e, em especial os paulistanos) vítimas dessas doenças, então porque não são muitas as canções sobre o assunto? Claro, identificamos sombras quando ouvimos o Ogi vaguear pela cidade ou quando o Emicida retorna à infância ou quando o Eduardo Facção relata sangue. Talvez a própria forma com que a sociedade encara a depressão, como algo que sugere fraqueza, esteja relacionado a isso. Não é fácil admitir ser portador dessa enfermidade em uma sociedade faminta por produtividade e alimentada pelo narcisismo. Fica ainda mais importante ouvir New Orleans.

Estruturada para que os versos se encaixem entre intervenções de dois vocais femininos, a canção abre com Srta Paola (que também canta a ponte) e tem Vanessa Jackson nos refrãos. Gugu explicou  que os trechos da Srta Paola representam a crise falando, e o refrão é a mente do rapper se comunicando durante a crise. A representação de uma crise psíquica e emocional como uma sedutora proposição ("Eu te prometo sorrisos/Férias na Disney/Uma casa na praia com vista pro mar") mas com uma contraproposta amarga ("Que eu quero ser teu enjôo, palpitação, um aperto no peito/músculos em tensão) é construída com ótimo jogo de palavras, além de ser uma visão bastante pertinente quanto ao mix volátil de emoções que percorrem a cabeça de quem sofre do mal. A exposição do caos mental segue nos versos de Gugu ("No meu peito se aninha/uma fratura no externo/Em segundos a santa ceia/vira um drink no inferno") que permanece sendo um dos mais hábeis MCs na arte sinuosa de obter imagens impactantes como acessórios do arcabouço temático. Veja as citações político-sociais que exemplificam Porto Príncipe, New Orleans, Síria e França, sem perder o foco no tema principal na primeira parte da música. Gugu admite através do refrão que sua mente está em conflito ("To pra ser teu problema/Não sou tua paixão/To pra te bagunçar/tirar seu chão").

A constante curva ascendente da diversidade estética e temática no rap brasileiro ganha assim mais um capítulo. Ao demonstrar que aqueles que criam rimas também são vulneráveis sem apelar para os famosos passos dogmáticos FFF, Gugu se torna uma voz para muitas pessoas que lutam diuturnamente contra aflições mentais. Ao mesmo tempo, mostra que não há barreiras temáticas dentro da música, e que o hip hop pode e deve ser tão multifacetado quanto as lutas que lutamos dignamente.     
    

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